O caniço que pensa

 

José Renato Nalini é Reitor da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras

 

O homem, diz Pascal, “c’est um roseau, mais um roseau qui pense”. Traduzo roseau como “caniço”, para indagar: será que o ser racional de fato pensa? Se pensa, como é que permite que seu semelhante passe fome, como é que convive com milhões de irmãos dormindo nos passeios de todas as cidades, com a violência crescente e consegue assistir ao noticiário da guerra como se ele nada tivesse a ver com isso?

Esse aparente absurdo ajuda a explicar o fosso intransponível que existe entre a teoria e a prática. Entre o que se proclama e o que se faz. Entre a promessa e seu descumprimento.

Na esfera jurídica esse fenômeno se escancara. Existe evidente desconexão entre a lei dos homens e a lei das coisas. Entre a lei positiva e a lei da natureza. Isso adviria da impossibilidade de se estabelecer relações lógicas entre o campo das quantidades mensuráveis e repetíveis e o das formas ou estruturas concretas? A ordem qualitativa é irredutível à ordem quantitativa.

Esse “caniço que pensa” propõe normas, elabora códigos de conduta, prevê sanções. Mas continua a se comportar como se nada disso existisse. Muitos chegam a transferir a responsabilidade pela apuração de sua conduta à divindade. Dizem com a boca acreditar Nela, mas praticam tudo aquilo que, pelo seu credo, a ofende.

Que tonelagem imensa de doutrinas, teorias, ensaios, teses e dissertações sobre a dignidade da pessoa humana, sobre a solidariedade, sobre a fraternidade, quando o mundo real reflete animosidade, ira, ódio, violência e crueldade.

A humanidade padece de um grave defeito congênito. Ela sabe disso, pois o “mea culpa” e o arrependimento, o remorso e o propósito de voltar à senda do bem não constituem novidade ou surpresa no discurso predominante.

O Cristianismo oferece a alternativa do sacramento da confissão, que não pode se resumir ao dito popular “lavou, está novo!”. Purgar as faltas pressupõe real e espontâneo reconhecimento de que elas poderiam não ter sido praticadas, se houvera observância das regras às quais voluntariamente nos comprometemos a obedecer.

O “caniço pensante” precisa refletir se realmente faz uso de sua razão e se o mundo não poderia ser muito melhor se os homens conseguissem reencontrar, dentro de si, a fagulha de bondade, generosidade e respeito pelo próximo, que a cobiça, a ambição e o egoísmo conseguiram sufocar.

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