Walter Martins de Oliveira – Psicanalista e Doutor em Educação
Há um ditado popular neste país de que, “No Brasil, o ano só começa depois do Carnaval”. Mas, o que fundamenta essa percepção? Nesta breve reflexão vamos apresentar, a partir da Psicanálise, uma análise crítica dessa crença. Diante disso, numa leitura psicanalítica, buscaremos compreender seus fundamentos inconscientes e seu impacto na organização individual e social em nossa gente. Para Freud, o nosso psiquismo funciona a partir de dois princípios fundamentais, que são o princípio do prazer e o princípio da realidade, ou seja, o indivíduo busca o prazer e a evitação da dor, porém, por outro lado, se dá conta da realidade que o impede grandemente, por conta das leis e normas impostas pela sociedade. Nesse sentido, o Carnaval, maravilhosa festa popular e cultural, como princípio do prazer, pode representar a suspensão temporária do superego (censor interno), consequentemente, uma trégua nas proibições; assegurar a permissão da inversão de valores, das fantasias e a liberação de impulsos, como que numa autorização coletiva ao prazer desmedido. Uma catarse coletiva. É o tempo certo para disfarçar as angústias da dureza da vida com todos os seus entraves, próprios do cotidiano da Classe Trabalhadora, mormente, nas grandes cidades deste país. Obviamente, há os que exageram, e todo o excesso esconde uma falta, isto é, uma falta de carinho, afeto, segurança, dignidade, reconhecimento e amor. Um excesso também pode esconder outro excesso, a saber: excesso de alegria que esconde o excesso de tristeza não resolvida, não elaborada; um excesso de folia (festança), que pode esconder um excesso de trabalho, excesso de contas para pagar, de obrigações e cobranças. O princípio da realidade, por sua vez, com o fim do Carnaval, evidencia o retorno do superego (o censor, juiz interno) e, então, significa o ano que efetivamente começa. Portanto, com o fim do Carnaval chegou o kairós, o momento crítico de agir, o tempo oportuno, o momento ideal para reinvestir a libido na realidade. É chegado o tempo de rearrumação da “casa”: cuidar da saúde (fazer regime, exercícios físicos), cuidar ainda mais da espiritualidade (Tempo Quaresmal para os católicos), cuidar da “saúde” financeira (economizar), cuidar da inter-relação (atenção efetiva ao diálogo, à interação, ao relacionamento), dar-se conta das escolhas e decisões necessárias a serem feitas (sem adiamentos ou procrastinações), reavivar a cidadania (reascender a chama das lutas por justiça social, mudanças sociais positivas, revigorar a prática do exercício de direitos e deveres civis, políticos e sociais). A expressão “o ano só começa depois do carnaval” denuncia e anuncia o como lidamos com o prazer e com a renúncia; com a permissividade e com os limites impostos pela realidade (individual e social), que necessita ser encarada, transformada e libertada dos grilhões da opressão. Finalmente, a Psicanálise nos ajuda a compreender e a aceitar essa transição, não apenas como uma questão cultural ou de calendário, mas como um sintoma social revelador de como lidamos com os desejos e com a inexorabilidade da realidade. Uma vez que o indivíduo não está conseguindo tratar essa passagem de modo saudável, precisa de ajuda de um profissional, certos de que sabemos que a vida não é só prazer, nem tão somente responsabilidade, comprometimento, dever e entrega.