O PT e a crise da esquerda

O declínio do PT aponta para uma trajetória em direção à esquerda do arco ideológico, onde espera um convívio com movimentos sociais de viés radical. Continuará a proximidade com sua tradicional base de trabalhadores, principalmente de contingentes das frentes metalúrgica e bancária. Trata-se da estratégia de sobrevivência. Na busca do traçado que marcou sua origem, procurará também o apoio de parcelas da intelectualidade, remanescentes dos tempos pré-Muro de Berlim, que continuam a acreditar na luta de classes, a condenar o neoliberalismo e a elevar aos céus da América Latina a bandeira bolivarianista. Quem desbravará essa tortuosa trilha será ele mesmo, Luis Inácio, o ícone do petismo, agora com a missão de juntar alas divididas que querelam pelo domínio do poder no partido que, há três décadas, despontava como referência ética da política.
O primeiro obstáculo de Lula será a ocupação de espaço no arco ideológico. Na extremidade esquerda, o PT haverá de deparar com nichos ocupados por entes como PSOL e PSTU. O primeiro quer se firmar como opção da esquerda, contando com a contundência de perfis como o de Ivan Valente e a ver-ve do carioca Chico Alencar. Que matiz o PT defenderá para se distinguir? Mais à direita dessa esquerda, esbarrará no PC do B, cujo ideario tem se diluído, eis que sua representação é difusa (e confusa), como denotam os discursos da senadora amazonense Vanessa Grazziotin e do nacionalista ex-ministro da Defesa Aldo Rebello. O que distinguiria o PT desses protagonistas?
Perdendo charme
O fato é que a esquerda tem se tornado um verbete que funciona mais como graxa para lustrar a cara de figuras que não adentraram as largas vias do século XXI. Perde charme, enquanto a direita engrossa suas fileiras. Patrocina com reservas o socialismo marxista, inspirado na análise do velho Karl Marx sobre a formação do capitalismo e a previsão de sua catastrófica evolução. A “violência como parteira da História”, dogma apregoado por Engels e que se firmou na segunda metade do século 19, até que tentou fa­zer escola entre nós nos idos de 1960. Foi repelida pela ditadura militar. A redemocratização do País abriu espaço para outros espaços no arco ideológico. Formou-se um novo território para acomodar as estacas do alquebrado socialismo revolucionário e os tijolos do liberalismo político e econômico. Os novos partidos de esquerda afastaram jargões carcomidos, como exploração capitalista, Estado burguês, classe dominante, submissão a interesses do capital financeiro. Uma nova teia passou a ser costurada com a agulha de programas de distribuição de renda e uma equação que conjuga as bases de Estado mínimo e Estado máximo. O socialismo clássico alterou sua fisionomia para juntar posições até então inconciliáveis, gerando novos conceitos como “capitalismo de face humana” e “socialismo de feição liberal”. Batizou-se essa combinação de social-democracia. Que aportou no Brasil em fins dos anos 1980, ganhando do PSDB densa interpretação, como se vê no texto Os desafios do Brasil, que engloba abordagens sobre as crises da contemporaneidade, a textura da democracia social na Europa, as estratégias de crescimento e as políticas para o desenvolvimento. Emergia a receita do Estado de bem-estar social (baseado na universalização dos direitos sociais e labo-rais e financiado com políticas fiscais progressistas), com o aumento da capacidade aquisitiva da população.
Essa meta tinha como alavanca o aumento dos rendimentos do trabalho e a intervenção do Estado nas frentes de gastos e regulação de atividades-chave para a expansão econômica. A partir dos anos 70 a 80 os partidos social-democratas incorporaram princípios neoliberais, impregnando a ideologia dominante da União Europeia. A doutrina ganhou novos contornos na esteira da globalização. As siglas mudaram, transformando bases eleitorais (categorias trabalhadoras) em classes médias, mais conservadoras e com certo acesso ao capital financeiro.
Social-Democracia
No Brasil, por tentativa e erro, nosso arremedo social-democrata adentrou no terceiro milênio, ganhou o centro do poder, sendo acusado de se curvar ao Consenso de Washington. A crítica saiu da artilharia do próprio PT e pequenos satélites. Deu certo. De tanto bater, as “esquerdas” alcançaram a alforria e tomaram assento no Palácio do Planalto. E o que ocorreu? As linhas gerais da tal política neoliberal foram preservadas e recriadas, agora com nova roupagem de traços nacionalistas. Luiz Inácio, mesmo jorrando um verbo duro contra a crueldade neocapitalista, acolhia a banca e os vetores do mercado. Na expressão de palanque, o appartheid social foi uma constante: nós e eles. A luta de classes emergia na expressão escandida com suor e ódio. Coisa de palanque.
Até que emergiu das sombras o fantasma do “mensalão”. A casa desmoronou. As últimas pilastras leninistas-marxistas “foram pro brejo”. Bandeiras da esquerda, do centro e da direita, todas juntas, sujaram-se no pântano. Os intelectuais que ainda brandiam a foice e o martelo tiveram de recolher suas armas. Uns poucos continuaram a berrar. Sindicalistas, atrelados ao Estado, buscaram nova modelagem para sua ação, entoando o refrão de defesa de conquistas trabalhistas. Qual a cor da esquerda no meio do lamaçal? O vermelho ficou sujo. Sobraram indistintos traços de uma ou outra sigla nanica de entonação trotskista. O velho PC do B tem dificuldade de se posi-cionar no olimpo da esquerda. As siglas afundaram na lama.
Ao mensalão, seguiu-se o petrolão, este com formação de tsunami. Jogado de um lado para outro por suas ondas, o PT vai tentar achar um rumo. Lula será o condutor desta empreitada. A ele, a missão de encontrar a tábua do náufrago. E, claro, sair-se bem dos dutos da Lava Jato. Dará certo?

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação.

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